sábado, 29 de junho de 2013

Psicose

Domingo

Não tenho certeza do porque estou escrevendo isso em papel e não no meu computador. Eu acho que é só porque eu tenho percebido algumas coisas estranhas. Não que eu não confie em meu computador, é só que... eu só preciso organizar meus pensamentos, preciso juntar os detalhes em algo sólido, que não possa ser deletado ou mudado... não que isso tenha acontecido. É só que... tudo se turva junto em minha cabeça quando não me concentro, e a memória esfumaçada cria uma estranha sensação às coisas.

Começo a me sentir limitado nesse pequeno apartamento. Talvez esse seja o problema. Eu só precisava escolher o apartamento mais barato e encontrei esse no porão. A falta de janelas aqui em baixo faz com que dia e noite mudem sem que eu perceba. Não tenho saído de casa faz dias por estar trabalhando nesse projeto de programação tão intensamente. Suponho que eu só queira terminar logo. Horas e horas sentado e olhando para o monitor pode fazer qualquer um se sentir estranho, eu  sei, mas  eu acho que não é isso.

Não tenho certeza de quando comecei a achar que havia algo de errado. Não consigo sequer definir o que é, ou talvez eu só não tenha falado com alguém em um bom tempo. Essa foi a primeira coisa que me alertou. Todos com quem eu costumava conversar online parecem muito ociosos de sua vida virtual, ou simplesmente não logavam mais. Minhas mensagens instantâneas não tinham resposta e o último e-mail que eu consegui de alguém era de um amigo dizendo que falaria comigo assim que voltasse da loja, e isso foi ontem. Eu ligaria pra ele do meu celular, mas o sinal aqui em baixo é horrível. Sim, é isso. Só preciso ligar para alguém. Eu vou lá fora.

-

Bem, não deu muito certo também. Ao que o mais fino fio de medo se desfaz, me sinto um  pouco ridículo por estar assustado. Olhei no espelho antes de sair, mas não fiz a barba de dois dias que deixei crescer. Só iria sair pra uma rápida ligação. Troquei de camisa, pelo menos, porque era hora do almoço, e imaginei que encontraria alguém que eu conhecesse. Isso também não aconteceu. Queria que houvesse.

Quando saí, abri a porta de metal que dá para meu apartamento lentamente. Uma pequena sensação de apreensão tinha de algum jeito entrado em mim, por alguma razão indefinida. Eu considerei-a devido ao fato de não ter tido uma conversa com ninguém além de mim mesmo a um ou dois dias. Olhei pelo corredor cinza e sujo, ainda mais sujo por ser um corredor de porão. Em uma das extremidades, havia uma porta de metal que levava até a fornalha do prédio. Estava trancada, naturalmente. Duas séquidas máquinas de refrigerante estavam ao lado. No dia em que vim morar aqui, comprei uma soda de uma delas, mas senhoria era preguiçosa demais para mandar recarregá-las e eu só consegui perder uma moeda. Sequer sei se alguém sabe da existência dessas máquinas aqui em baixo.

Fechei minha porta suavemente e fui para o lado oposto, tomando cuidado para não fazer barulho algum. Não sei porque decidi fazer isso, mas era divertido me deixar levar pelo impulso de não quebrar o ritmo do zumbido das máquinas de refrigerante, pelo menos naquele momento. Cheguei até a escadaria e subi até a porta de frente do prédio. Eu olhei através da pequena janela da pesada porta, e fiquei chocado ao perceber que não era hora do almoço. Aquele brilho de cidade flutuava pela rua escurecida lá fora, e as luzes do tráfego na curva lá longe brilhavam amarelas e vermelhas. Nuvens sujas, roxas e pretas do brilho da cidade se penduravam acima. Nada se mexia, salvo algumas árvores na calçada que se sacudiam com o vento. Eu ouvia-o vagamente pela espessa porta de aço, e sabia que era aquele tipo único de vento noturno, aquele tipo constante, frio, quieto, fora do ritmo constante que ele fazia ao passar pelas incontáveis folhas das árvores.

Decidi não sair.

Em vez disso, peguei meu celular e chequei o sinal. As barras estavam todas cheias, e eu sorri. Hora de ouvir a voz de alguém, lembro-me de ter pensado aliviado. Era algo tão estranho, sentir medo de nada. Balancei minha cabeça, rindo para mim mesmo silenciosamente. Segurei a tecla de atalho para ligar para minha melhor amiga Amy, e mantive o celular contra meu ouvido. Chamou uma vez... então parou. Nada aconteceu. Ouvi silêncio por uns bons vinte segundos, até que a chamada foi encerrada. Franzi o cenho e olhei para a barra de sinal de novo e... ainda estava cheia. Ia ligar de novo quando o celular tocou na minha mão, me assustando. Levei-o ao ouvido.

"Alô," disse claramente uma voz masculina, obviamente jovem, como eu. "Quem é?"

"John," Eu respondi, confuso.

"Oh, me desculpe, número errado,", ele respondeu, e desligou.

Abaixei o telefone e lentamente me encostei na dura parede de tijolos da escadaria. Aquilo tinha sido estranho. Eu olhei nas chamadas recebidas e percebi que era um número desconhecido. Antes que pudesse pensar melhor nisso, o celular tocou de novo, me dando um baita susto outra vez. Dessa vez, olhei o número antes de atender e era outro número desconhecido. Dessa vez, segurei o celular no meu ouvido e não falei nada. Ouvi tão somente o barulho de fundo comum que os celulares fazem. Então, uma voz familiar quebrou minha tensão.

"John?" foi a única palavra, na voz de Amy.

Suspirei em alívio.

"Ei, é você," respondi.

"Quem mais seria?" ela respondeu. "Ah, o número. Estou em uma festa na Sétima Rua, e meu celular morreu quando você me ligou. Esse é o celular de outra pessoa, obviamente."

"Ah, ok," eu disse.

"Onde você está?" ela perguntou.

Meus olhos passaram por cima dos monótonos blocos cilíndricos e brancos e da porta de metal com sua pequena janela.

"No meu prédio," suspirei. "Só me sentindo meio engaiolado. Nem sabia que era tão tarde."

"Você deveria vir aqui," disse ela, rindo.

"Não... não me sinto disposto a procurar sozinho por um lugar desconhecido no meio da noite," Eu disse, olhando pela janela para a silenciosa rua que secretamente me assustou só um pouquinho. "Acho que só vou continuar trabalhando ou vou pra cama."

"Inaceitável!" ela replicou. "Eu posso ir te buscar! Você mora perto da Sétima Rua, certo?"

"Você tá tão bêbada assim?" disse eu despreocupado. "Você sabe onde eu moro."

"Ah, é claro," ela disse abruptamente. "Acho que posso chegar ai andando né?"

"Claro que pode se quiser gastar uma meia hora," disse a ela.

"Beleza," ela disse. "Ok, tenho que ir, boa sorte com seu trabalho!"

Abaixei o celular outra vez, olhando o monitor clarear conforme a chamada era encerrada. Então o silêncio inquestionável voltou aos meus ouvidos. Os dois números desconhecidos e a exótica rua lá fora deram vazão à minha solidão nessa vazia escadaria. Talvez por ter visto muitos filmes de terror, de repente tive a inexplicável ideia de que algo poderia olhar pela janela e me ver, algum tipo de entidade terrível que flutuava na extremidade da solidão, só esperando o momento de assustar inesperadamente pessoas que se mantivessem muito tempo fora de contato com outros humanos. Eu sabia que o medo era irracional, mas ninguém mais estava por ali, então... corri escadas a baixo e corredor a dentro até fechar a porta do meu porão atrás de mim, tudo no mais suave silêncio que pude manter. Como eu disse, me sinto ridículo por estar assustado com nada, e o medo já se foi. Escrever isso aqui ajuda bastante, faz com que eu perceba que nada está errado. Filtra pensamentos meio-formados e medos e deixa somente frios e realísticos fatos. É tarde, recebi uma ligação de um número desconhecido, o celular da Amy morreu então ela me ligou de outro número. Nada de estranho está acontecendo.

Ainda, há algo de errado com aquela conversa. Sei que pode só ter sido o álcool que ela ingeriu mas, ou será que ela só pareceu estranha para mim? Ou será... sim, é, é isso! Eu não tinha percebido isso até escrever aqui, escrever realmente está ajudando. Sabia que escrever ajudaria. Ela disse que estava em uma festa, mas eu não pude ouvir nenhum barulho de fundo! Claro, isso  não quer dizer nada em particular. Ela podia ter ido para fora para falar comigo. Não... também não podia ter sido isso... eu teria escutado o vento soprar. Preciso ver se o vento ainda sopra lá fora!

Segunda-Feira

Esqueci de terminar de escrever ontem a noite. Não tenho certeza do que esperava ver quando corri até lá em cima da escadaria e olhei pela janela da porta de aço. Me sinto ridículo. O medo da noite passada me parece nebuloso e sem sentido para mim agora. Mal posso esperar para sair ao sol de novo. Vou checar meu e-mail, me barbear, tomar um banho, e finalmente sair! Espera... Acho que ouvi algo.

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Foi um raio. Toda aquela coisa de luz do sol e vento fresco não aconteceu. Subi a escadaria e só  encontrei desapontamento. A pequena janela da porta de aço só mostrou água corrente, ao que a chuva torrencial batia contra ela. Apenas uma luz muito fraca e suja era filtrada através da chuva, mas ao menos eu sabia que era dia, mesmo que cinza, doentio e encharcado. Tentei olhar pela janela esperando um raio para poder ver a rua, mas a chuva estava tão pesada que eu não conseguia ver nada além de vagas formas se movendo em ângulos estranhos nas ondas que lavavam a janela. Desapontado, me voltei para as escadas, mas não queria voltar para meu quarto. Ao invés disso, subi as escadarias passando o primeiro e o segundo andar. As escadas acabavam no terceiro andar, o mais alto do prédio. Olhei através do vidro que estava em uma das paredes mas não era uma janela, era aquele tipo de vidro grosso, fosco, que só permite que a luz passe,  não se conseguia ver nada além de cores. Nesse caso, cinza.

Abri a porta da escadaria e entrei no corredor do terceiro andar. As mais ou menos dez portas de madeira dura, pintadas algum dia do passado de azul, estavam todas fechadas. Escutei, conforme andava, mas estava no meio do dia, então não me surpreendi em não ouvir nada além da chuva lá  fora. Ao que me postei lá parado no corredor sujo, ouvindo a chuva, tive a estranha sensação de que as portas estavam ali como silenciosos monólitos de granito erguidos por alguma antiga e esquecida civilização por algum insondável motivo de proteção. Um relâmpago clareou os céus, e, por um momento, pude jurar que a velha e apodrecida madeira pareceu muito pedra rude. Ri de minhas suposições e de ter deixado minha imaginação tirar o melhor de mim, mas então me ocorreu que o brilho sujo e os trovões deveriam significar que havia uma janela em algum lugar no corredor. Uma vaga memória emergiu, e eu de repente me lembrei que o terceiro andar tinha  uma alcova e que havia uma janela embutida na metade do corredor do andar.

Animado em olhar para a chuva e possivelmente ver outro ser humano, rapidamente andei até a alcova, achando uma enorme janela de vidro. A chuva lavava ela, assim como a janela da porta da frente, mas eu poderia abrir essa. Coloquei minha mão do lado e deslizei ela para que abrisse, mas hesitei. Tive a péssima sensação de que se abrisse aquela janela, veria algo horrível do outro lado, e que me arrependeria profundamente. Tudo tem estado tão estranho ultimamente... então criei um plano, e voltei com o que eu precisava. Eu realmente não acho que vá resultar em algo, mas eu estou entediado, está chovendo e eu não vou surtar até enlouquecer quieto. Voltei pra pegar minha webcam. O fio não é tão grande assim a ponto de chegar para chegar ao terceiro andar,obviamente, mas ainda assim consegui colocar ela entre as duas máquinas de refrigerante do meu andar, coloquei o fio pela parede e passei fita preta por cima para camuflar. Sei que isso é estúpido, mas eu não tenho nada mais para fazer.

Bem, nada aconteceu. Me apoiei na porta da escadaria, mantive-me quieto, empurrei a pesada porta de metal e corri como nunca de volta ao meu quarto e tranquei a porta. Olhei a câmera em meu computador intensamente, vendo o corredor lá fora e boa parte da escadaria. Estou olhando agora mesmo. E não vejo nada interessante. Só gostaria que a posição da câmera fosse diferente, para poder ver a porta da frente. Ei! Alguém online!

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Consegui uma webcam mais velha e que não funciona muito bem, para falar com meu amigo online. Eu realmente não pude explicar a ele porque eu queria conversar com vídeo, mas eu me senti muito bem em ver o rosto de outra pessoa. Ele não pode falar por muito tempo, e também não falou nada com muito sentido, mas eu me senti muito melhor. Meu medo estranho quase passou. Eu me sentiria completamente melhor, mas havia algo de errado sobre essa conversa também. Eu sei que eu já disse que quase tudo pareceu bem estranho, mas, ele me pareceu muito vago nas respostas. Eu não consigo me lembrar uma coisa específica que ele disse... nem um nome, nem um lugar, ou evento... mas ele me pediu meu e-mail para manter contato. Espera, chegou um email.

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Vou sair agora, acabei de receber um email da Amy me chamando para comer no mesmo lugar de sempre. Eu amo pizza, e estou comendo comida aleatória da geladeira a dias, então mal posso esperar. De novo, me sinto ridículo por esses dias estranhos que tenho tido. Vou destruir esse diário assim que eu voltar. Ah, outro e-mail.

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Ah meu Deus, eu quase deixei o e-mail e abri a porta, eu quase abri a porta. Eu quase abri a porta, mas eu li o e-mail primeiro! Era de um amigo de que não ouvia falar a muito tempo, e tinha sido mandado a um enorme número de pessoas, que devem corresponder a todas as pessoas que ele tem salvo no e-mail dele. Não tinha assunto, e dizia, simplesmente:

"visto com os seus próprios olhos não confie neles eles"

Mas que diabos aquilo queria dizer? As palavras me assustaram, e eu me mantive lendo e relendo elas. É um e-mail desesperado enviado justamente quando... algo aconteceu? As palavras obviamente foram cortadas sem serem concluídas! Outro dia qualquer eu teria apagado considerando spam de vírus de computador ou algo assim mas, mas, as palavras... visto com seus próprios olhos! Não consigo para de ler e reler esse diário e olhar os últimos dias e perceber que eu não vejo outra pessoa com meus próprios olhos ou que tenha falado com outra pessoa cara a cara. A conversa na webcam com meu amigo foi tão estranha, tão vaga, tão... esquisita, agora que eu paro pra pensar nela. Foi esquisita? Ou é só o medo nublando minha memória? Minha mente brinca com a progressão dos eventos que tenho escrito aqui, apontando que eu não tenha vivido um fato sequer que não possa ser classificado como suspeito. O número errado que perguntou meu nome e a estranha ligação subsequente da Amy, o amigo que pediu meu email... Eu o chamei quando vi ele online! E então recebi um email em poucos minutos após a conversa! Meu deus! Aquela ligação com a Amy! Eu disse no telefone, eu disse que ela levaria meia hora para chegar aqui andando da Sétima Rua! Eles sabem que eu estou por perto! E se estiverem tentando me achar? Onde está todo mundo? Porque não vi nem ouvi ninguém mais nesses dias?

Não,  não, isso é loucura. Isso é com certeza loucura. Preciso me acalmar. Essa loucura precisa terminar.

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Não sei o que pensar. Corri pelo meu apartamento furioso, segurando meu celular para cima em cada canto, procurando sinal através das pesadas paredes. Finalmente, no pequeno banheiro, perto de um dos cantos do teto, tenho uma única barra. Segurando meu celular ali, mandei uma mensagem a todos os números na minha lista. Não esperando atrair nada além dos meus medos infundados, eu simplesmente mandei:

Você tem visto outro alguém cara a cara ultimamente?

Nesse ponto, eu simplesmente queria uma resposta. Não me importava o que quer que fosse a resposta, ou se eu me envergonhasse. Eu tentei ligar para alguém algumas vezes, mas eu não conseguia levantar minha cabeça tão alto até o ponto de sinal. E se eu abaixasse meu celular um centímetro sequer o sinal  acabava. Então me lembrei do computador. E me joguei nele, instantaneamente mandando mensagens para todos online. A maioria estavam inativos ou ausentes. Ninguém respondia. Minhas mensagens ficavam mais e mais frenéticas, e eu comecei a dizer as pessoas onde eu estava e pedir que elas viessem pessoalmente para uma conversa sem razões transitáveis. Não me importava com mais nada naquele momento, só precisava ver outra pessoa!

Eu também arrebentei meu apartamento procurando por algo que eu poderia ter me esquecido; algum meio de contatar outro ser humano sem abrir a porta. Sei que é louco, sei que é sem fundamento,mas e se? E SE? Só preciso ter certeza! Colei o celular no teto com fita, só por garantia.

Terça-Feira

O celular tocou! Exausto da minha noite de fúria, devo ter pego no sono. Acordei com o celular tocando, e corri para o  banheiro,  subi no vaso e abri o telefone fitado no teto. Era Amy, e eu me senti tão melhor. Ela realmente estava preocupada comigo, e aparentemente ela esteve tentando me contratar desde a última vez que nos falamos. Ela está vindo aqui, e, sim, ela sabe onde eu moro sem ter que me perguntar. Me sinto tão envergonhado... Definitivamente vou jogar esse diário fora antes que qualquer um veja ele. Eu sequer contei a alguém que estou escrevendo ele. Talvez só por ser a única comunicação que tenho tido desde... Deus sabe quando. Eu estou horrível, também. Me olhei no espelho antes de voltar aqui. Meus olhos estão fundos, minha barba está mais espessa, e eu simplesmente não pareço saudável.

Meu apartamento está um lixo, mas eu não vou limpá-lo. Preciso que mais alguém veja pelo o que eu tenho passado. Esses últimos dias NÃO tem sido normais. Eu não sou do tipo que imagino coisas. Eu sei que eu estou sendo vítima de extremas possibilidades. Provavelmente perdi a chance de ver outra pessoa uma dúzia de vezes. Só aconteceu deu sair no meio da noite e no meio do dia, quando todos tinham saído. Tudo está perfeitamente bem. Além do mais, encontrei algo no closet ontem a noite que tem me ajudado tremendamente: Uma televisão! Eu ajeitei ela antes de escrever isso, e ela está nos fundos. Televisões sempre foram uma escapatória para mim, e me lembram que ainda existe um mundo atrás dessas sujas paredes de tijolos.

Estou aliviado que Amy é a única que me respondeu depois da tentativa frenética de contratar todo mundo ontem a noite. Ela a anos é minha melhor amiga. Ela não sabe, mas, eu posso lembrar do dia em que nos conhecemos como um dos raros e únicos momentos de alegria verdadeira da minha vida. Eu me lembro do dia quente de sol. Parece uma outra realidade comparada a esse lugar escuro, sujo, sozinho e chuvoso. Sinto como se tivesse passado dias sentado naquele parquinho, velho demais pra brincar, só falando com ela e andando fazendo nada mesmo. Eu ainda sinto como se pudesse voltar até aquele momento as vezes, e isso me lembra que esse lugar maldito não é tudo que existe... finalmente, uma batida na porta!

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Achei estranho não conseguir ver ela pela câmera que eu escondi entre as máquinas de refrigerante. Eu percebi que ela estava mal posicionada, como quando eu não podia ver a porta da frente. Eu deveria saber. Eu deveria saber! Depois da batida, eu gritei através da porta brincando que eu tinha escondido uma câmera entre as máquinas de refrigerante, porque estava envergonhado comigo mesmo de ter levado minha paranoia tão longe assim. Depois que fiz isso, eu vi a imagem dela andar pela câmera e olhar para ela. Ela sorriu e acenou.

"Ei!" ela disse para a câmera brilhantemente, dando uma olhada torta.

"É estranho, eu sei," eu disse no microfone acoplado no meu computador. "Eu tive uns dias bem estranhos."

"Deve ter tido," ela replicou. "Abre a porta, John."

"Ei, espera um minuto," eu disse a ela no microfone. "Me diga algo sobre nós, só pra provar que você é você mesmo."

Ela olhou estranho para a câmera.

"Ah, tudo bem," ela disse devagar, pensando. "Nós nos conhecemos aleatoriamente quando éramos grandes demais para estarmos no parquinho, certo?"

Suspirei fundo conforme a realidade voltava e o medo sumia. Deus, eu tenho sido ridículo. É claro que é a Amy! Aquele dia não estava em nem um outro lugar a não ser na minha memória. Eu nunca mencionei a ninguém, não por vergonha, mas pela sensação estranha da nostalgia secreta  e a esperança que esses dias voltassem. Se houvesse alguma força desconhecida tentando me enganar, como eu temia, não havia como ela saber sobre aquele dia.

"Haha, tudo bem, vou te explicar tudo," Eu disse a ela. "Espere ai."

Corri ao meu pequeno banheiro e concertei meu cabelo da melhor maneira que pude. Estava horrível, mas ela entenderia. Me esgueirando pela bagunça que eu mesmo inacreditavelmente fiz nesse lugar, andei até a porta. Coloquei minha mão na maçaneta e dei uma última olhada para a bagunça. Tão ridículo, eu pensei. Meus olhos passaram pela comida deixada pela metade no chão, a lata de lixo transbordando, e a cama que estava fora do lugar, que eu movi procurando por algo... Deus sabe o que. Eu quase me virei para a porta a abri ela, mas meus olhos caíram em uma última coisa: a velha webcam, a que eu usei para aquela esquisita e vaga conversa com meu amigo.

Sua silenciosa esfera negra perigosamente se moveu para o lado, e sua lente apontou para a mesa onde esse diário se encontrava. Um terror sem tamanho tomou conta de mim  quando percebi que algo poderia estar olhando através daquela câmera, e poderia ver o que eu escrevi sobre esses dias. Eu perguntei a ela sobre uma coisa sobre nós, e ela escolheu a única coisa no mundo todo que eu pensei que ele ou eles não saberiam... mas SABIAM! ELES SABIAM! PODIA ESTAR ME VIGIANDO O TEMPO TODO!

Não abri a porta. Gritei. Gritei no medo descontrolado. Derrubei a velha webcam no chão.A porta sacudiu, e a maçaneta girou. Mas eu não ouvia a voz de Amy do outro lado da porta. Era a porta do porão, feita para conter pancadas, muito resistente? Ou não era Amy do outro lado? O que poderia estar tentando entrar, se não fosse ela? Quem diabos estava lá fora? Eu vi em meu computador a imagem da webcam lá fora, e ouvir ela nos alto-falantes através do microfone lá de fora, mas era real? Como posso saber? Ela se foi agora - eu gritei e gritei por ajuda! Empilhei tudo do apartamento bloqueando a porta da frente.
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Sexta-feira

Ao menos eu acho que é Sexta. Eu quebrei tudo de eletrônico. Quebrei meu computador, fiz em pedacinhos. Cada coisa que poderia ser acessada por rede, ou pior, alterada, eu sou um programador, eu sei. Todo pedacinho de informação que eu dei desde que isso começou, meu nome, meu email, minha localização - nenhum desses teria saído se eu não tivesse dado eles. Tenho lido e relido tudo que escrevi. Tenho variado de frente para trás, alternando entre terror destrutivo e descrença onipotente. As vezes acredito absolutamente que alguma entidade fantasmagórica está totalmente dedicada a me fazer sair. Desde o início, com a ligação da Amy, ela tem efetivamente me chamado para abrir a porta e sair.

Continuo correndo por isso na minha cabeça. Um ponto de vista diz que eu tenho agido como um louco, e que tudo isso tem sido uma extrema convergência de probabilidades - nunca sair nas horas certas por pura sorte, nunca ver outra pessoa por pura chance, recebendo emails aleatórios e sem sentido de algum vírus na hora certa. E o outro ponto de vista diz que essa extrema convergência de probabilidades é a razão pela qual alguém ou alguma coisa lá fora não tenha me pego ainda. Sigo pensando: Nunca abri a janela no terceiro andar. Eu nunca abri a porta da frente. Até aquela incrivelmente estúpida manobra com a câmera escondida na qual eu corri direto para meu quarto me tranquei. Eu não tenho aberto-a desde que abri a porta de aço da frente e corri para cá. Seja lá o que for que esteja lá fora - se há algo lá fora - nunca fez uma aparição no prédio antes deu abrir a porta da frente. Talvez a razão para não estar no prédio é que ela estava lá fora pegando todo o resto das pessoas... E então esteve esperando, até eu trair minha existência ligando para Amy... uma ligação que não funcionou, até que me ligou e perguntou meu nome...

O terror literalmente tem tomado minha mente toda a vez que eu tento juntar os cacos desse pesadelo. O e-mail -curto, cortado - era de alguém tentando colocar algo para fora? Alguma voz amigável desesperadamente tentando avisar antes que ele viesse? Visto com seus próprios olhos, não acredite neles eles - exatamente o que eu tenho suspeitado. Pode ser um controle mestre sobre tudo que é eletrônico, praticando sua insinuosa enganação para me induzir a sair. Porque não pode entrar? Bateu na porta - deve ter alguma presença sólida... a porta... a imagem das portas no corredor lá em cima como monólitos guardiões volta a minha mente toda vez que tento traçar esse rastro de pensamentos. Se houvesse uma entidade fantasmagórica tentando fazer com que eu saísse, talvez não consiga atravessar portas. Sigo pensando em todos os filmes que eu vi e livros que eu li, tentando gerar alguma explicação para isso. Portas sempre foram um intenso material para a imaginação humana, sempre vistas como passagens ou portais de importância especial. Ou talvez a porta é simplesmente muito resistente? Eu sei que eu poderia arrombar qualquer uma das portas desse prédio, excetuando as pesadas do porão. Fora isso, a verdadeira pergunta é, quem é que pode me querer? Se quisesse só me matar, poderia fazer isso de muitas maneiras, incluindo me manter aqui até que eu morresse de fome. E se não quiser me matar? E se quiser fazer algo muito pior a mim? Deus, porque eu não posso fugir desse pesadelo?!

Uma batida na porta...

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Eu falei para as pessoas do outro lado da porta que eu preciso de um minuto pra pensar e sair. Eu realmente só estou escrevendo isso aqui para poder pensar no que fazer. Ao menos dessa vez eu ouvi suas vozes. Minha paranoia - e sim, eu reconheço que tenho sido paranoico - tem feito eu pensar de todos os modos possíveis que suas vozes são falsas, feitas eletronicamente. Podiam haver nada além de alto-falantes lá fora, simulando vozes humanas. Realmente levou três dias até eles virem falar comigo? Amy está lá fora com dois policiais e um psicanalista? Talvez tenha levado três dias para pensarem no que falar para mim - o psicanalista pode ser bem convincente, se eu decidisse pensar que isso tudo foi só um louco mal entendido, e não uma entidade fantasmagórica tentando me fazer abrir a porta.

O psicanalista tem uma voz mais velha, autoritária mais ainda assim preocupada. Eu gostei dela.  Estou desesperado para ver alguém com meus próprios olhos. Ele disse algo sobre cyber-psicose, e eu sou só mais um de uma epidemia nacional de milhares de pessoas tendo ataques de pânico engatilhados por alguma mensagem sugestiva, um email que receberam de algum jeito. Eu juro que ele disse: "recebeu de algum jeito". Eu acho que ele quer dizer espalhado pelo país inexplicavelmente, mas eu estou suspeitando fortemente que a entidade revelou algo, disse que eu sou parte de uma onda de comportamento, que um bom número de pessoas estão tendo o mesmo problema com os mesmos medos, mesmo  que nunca tenhamos nos  comunicado.

Isso claramente explica o estranho email sobre olhos que eu recebi.  Eu não peguei o e-mail gatilho original. Eu peguei um descendentes dele - meu amigo pode ter caído também, e tentou avisar a todos sobre o que ele sabia sobre seus medos paranoicos. Foi assim que o problema se espalhou, o psicanalista afirma. Eu posso ter espalhado também, com minhas mensagens. Uma dessas pessoas pode estar derretendo agora mesmo, após ser engatilhada pro algo que eu lhes enviei, que eles podem interpretar da maneira que quiserem, como quiserem, algo como "você tem visto alguém cara a cara ultimamente?" O psicanalista me disse que ele não queria "perder outro", e que pessoas como eu eram inteligentes, e isso é o que nos matava.Nós criávamos conexões tão bem que o fazíamos até onde elas não deveriam existir. Ele disse que é fácil cair em paranoia no nosso mundo acelerado, um lugar de constante mudança onde mais e mais nossa interação é simulada...

Tenho que dar algum crédito a ele. É uma bela explicação. Claramente explica tudo. Explica perfeitamente tudo, de fato. Tenho todas as razões para me esquecer desse medo de pesadelo sobre algo ou alguma consciência que vem tentado fazer com que eu abra a porta para que possa me capturar para algo horrível e ainda pior que a morte. Eu seria muito estúpido em me manter aqui até morrer de fome, depois dessa explicação, para despistar a entidade que pegou todos os outros. Seria estupidez acreditar nisso, após essa explicação, que eu seria um dos últimos ainda vivos num mundo vazio, me escondendo no vazio do meu quarto de porão, despistando alguma impensável entidade enganadora só por me negar a ser capturado. É uma explicação perfeita para toda e qualquer coisa estranha que eu tenha visto ou escutado, e eu tenho todos os motivos do mundo para deixar meus medos se esvaírem e abrir a porta.

É exatamente isso que eu não vou fazer.

Como posso ter certeza? Como posso saber o que é real e o que é enganação? Todas essas malditas coisas com seus fios e sinais que vem de fonte desconhecida! Não são reais, não posso ter certeza! Sinais através da câmera, vídeo falso, chamadas enganadoras no telefone, emails enganadores! Até a televisão, quebrada no chão - Como posso saber que ela é real? São só sinais, ondas, luzes...a porta! Estão arrombando a porta! Está tentando entrar! Que tipo insano de mecanismo eles poderiam estar usando para simular o som de homens atacando uma porta dura de madeira tão bem? Ao menos, eu finalmente vi com meus próprios olhos... não há nada mais com que eles possam me enganar, destruí todo o resto! Não podem enganar meus olhos, ou podem? Visto com seus próprios olhos não acredite neles eles... espera... aquela mensagem desesperada mandava eu confiar em meus olhos, ou me avisava para me preocupar com meus  olhos também? Ah meu Deus, qual a diferença entre a câmera e meus olhos? Ambos geram luz com sinais de eletricidade - são a mesma coisa! Não posso ser enganado! Tenho que ter certeza! Tenho que ter certeza!

Data desconhecida

Calmamente pedi por papel e caneta, dia após dia, até que finalmente me deram. Não que isso importe. O que vou fazer? Arrancar meus olhos fora? As amarras se parecem parte de mim agora; A dor se foi. Percebi que essa é uma das minhas últimas chances de escrever legivelmente, uma vez que, sem minha visão para corrigir erros, minhas mãos vão lentamente escrever os movimentos envolvidos na escrita. É um tipo de autoindulgência, essa escrita... é um relíquia  de outro tempo, pois certamente todos lá fora estão mortos... ou algo bem pior.

Sento contra a parede acolchoada dia após dia. A entidade me trás comida e água. Se mascara como enfermeiras bondosas, como um doutor sem carisma. Acho que sabe que minha audição melhorou bastante, agora que vivo na escuridão. Finge conversas nos corredores, com a chance  de que eu escute. Uma das enfermeiras fala sobre engravidar logo. Um dos médicos perdeu sua esposa em um acidente de carro. Nada disso importa. Nada disso é real. Nada me convence. Exceto ela.

Essa é a pior parte, a parte que eu mal posso aguentar. A coisa vem até mim, mascarada como Amy. A recriação é perfeita. Soa perfeitamente como Amy, tem o mesmo cheiro que Amy, e até produz uma considerável reprodução do som único do seu sorriso com risadinha entre as lágrimas nas bochechas cheias de vida. Quando primeiro veio a mim, me disse tudo que eu queria ouvir. Disse que me amava, que sempre me amou, que ia entender o porque eu fiz tudo isso, que ainda poderíamos ter uma vida juntos, se eu simplesmente parasse de insistir que havia algo me enganando. Ela gostaria que eu acreditasse... não, ela precisava que acreditasse que ela era real.

Quase caí nessa. Realmente, quase caí. Duvidei de mim mesmo por um bom tempo. No fim, de qualquer jeito, era tudo muito perfeito, tudo muito impecável, muito real. A Amy falsa vinha todo dia, então toda semana, até parar de vir finalmente... mas não acho que a entidade vá desistir. Acho que ela só está esperando com mais truques na manga. Vou resistir até o fim da minha vida,  se preciso. Não sei o que aconteceu com o resto do mundo, mas eu sei que essa coisa precisa que eu caia em suas enganações. Precisa disso, então talvez, só talvez, eu seja um empecilho em sua empreitada. Talvez Amy ainda esteja viva por ai em algum lugar, viva ainda só por minha determinação em resistir ao enganador. Me mantenho preso a essa esperança, me balançando para frente e para trás na minha cela para passar o tempo. Nunca vou desistir. Nunca vou me quebrar.  Eu... eu sou um herói!

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O doutor leu o papel no qual o paciente havia rabiscado. Era quase ilegível, escrito em uma escrita torta a desigual de alguém que não podia enxergar. Ele gostaria de sorrir para o homem, um lembrete da vontade humana de sobreviver, mas ele sabia que o paciente estava completamente desiludido.

Além do mais, um homem são teria caído a enganação a muito tempo atrás.

O doutor gostaria de sorrir. Gostaria de sussurrar palavras de encorajamento ao homem desiludido. Ele gostaria de gritar, mas os filamentos de nervo enrolados em sua cabeça e em seus olhos fizeram ele fazer o oposto. Seu corpo andou até a cela como um boneco, e ele disse ao paciente, outra vez, que ele estava errado, e que não havia ninguém tentando enganá-lo.

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