sexta-feira, 21 de novembro de 2014

De Stephen King: Matéria Cinzenta


BOTE SUA PAMPERS E DEGUSTE!


Saudações, minhas queridas e insanas pessoas. Venho, por meio desta breve introdução de mais um post do Predomínio, desculpar-me pelo nosso longo - nem tanto - hiato. Como podem perceber, o mal já se esvaiu; ontem mesmo contamos com dois posts, compondo nosso regresso (leia-os, caso não tenha lido: Eles Estão Em Toda Parte e Focas Estupram Pinguins e Intrigam Pesquisadores).

Focando novamente no post atual, o que hoje vos trago é um conto de um dos mais renomados escritores de horror do planeta: Stephen King. Claro, você com certeza já ouviu falar dele; autor de livros como Carrie, O Iluminado, Dança da Morte entre outros, de sucesso recíproco. O conto a seguir é um dos muitos que compõem o livro "Sombras da Noite", o primeiro livro de contos do autor.

Degustem!
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Durante toda a semana vinham prevendo uma tempestade do norte e ela chegou por volta de quinta-feira, uma nevasca violenta, com ventos uivantes, que deixou uma camada de dez centímetros de neve às quatro da tarde e não deu sinal de arrefecer. Os quatro ou cinco de costume estavam reunidos em torno do Confiável no Coruja Noturna de Henry, que é o único estabelecimento para cá de Bangor que fica aberto dia e noite.  

Henry não faz grandes negócios ― o movimento, em grande parte, resulta de vender cerveja e vinho aos universitários ―, mas ganha o suficiente para viver bem e o bar é um bom lugar para nós, velhos aposentados, nos reunirmos e falarmos de quem morreu e de como o mundo está indo para o brejo. 

Nessa tarde, Henry estava ao balcão; Bill Pelham, Bertie Connors, Carl Littlefield e eu estávamos perto do fogão. Lá fora, nenhum carro se movimentava na Ohio Street e os tratores de limpar neve trabalhavam como loucos. O vento soprava forte, formando montinhos de neve que pareciam o dorso de um dinossauro. 

Henry só tivera três fregueses a tarde inteira ― isto é, sem contar o cego Eddie. Eddie tem cerca de setenta anos e não é totalmente cego. Mas vive esbarrando nas coisas. 

Aparece uma ou duas vezes por semana, enfia um pão embaixo do braço e sai com uma expressão no rosto que parece dizer: aí está, seus estúpidos filhos da puta, enganei-lhes outra vez. 

Certa feita, Bertie perguntou a Henry por que motivo não colocava um ponto final naquilo. 

― Vou-lhe contar ― respondeu Henry. ― Alguns anos atrás, a Força Aérea queria vinte milhões de dólares para construir o protótipo de um avião que havia projetado. Bem, custou-lhe setenta e cinco milhões e não conseguiu voar. Isso aconteceu há dez anos, quando o cego Eddie e eu éramos consideravelmente mais moços, e eu votei na mulher que apoiou a lei em favor da construção do avião. Eddie votou contra ela. Desde então, eu pago o pão dele. 

Bertie pareceu não entender muito bem a resposta, mas recostou-se na cadeira para refletir a respeito. 

Agora, a porta tornou a se abrir, deixando entrar uma lufada do gelado e cinzento lá de fora, e um garoto entrou, batendo os pés no chão para tirar a neve das botas. Identifiquei-o num segundo. Era o filho de Richie Grenadine e parecia ter acabado de beijar a extremidade errada de um bebe. Seu pomo-de-adão subia e descia sem parar e o rosto estava da cor de oleado velho e desbotado. 

― Sr. Parmalee ― disse ele a Henry, os olhos girando na cabeça como rolamentos de esferas. ― O senhor tem que vir. Tem que pegar a cerveja e vir comigo. Não posso voltar lá fora. Estou com medo. 

― Vamos com calma ― disse Henry, tirando o avental branco de açougueiro e dando a volta ao balcão. ― O que há? Seu pai tomou um pileque? 

Quando ele disse aquilo, dei-me conta de que Richie não aparecia há algum tempo. 

Geralmente, vinha uma vez por dia apanhar uma caixa da cerveja que fosse mais barata no momento ― um homenzarrão gordo, com bochechas como bunda de porco e braços como presuntos. Richie sempre foi um porco em matéria de cerveja, mas sabia controlar-se quando trabalhava na serraria em Clifton. Então, algo aconteceu ― uma empilhadeira funcionou mal, ou o erro foi do próprio Richie ― e ele ficou desempregado, na maior boa vida, tendo recebido uma indenização da serraria. Algum problema com suas costas. De qualquer forma, engordou como um capado. Não aparecera ultimamente, embora eu de vez em quando visse o garoto vir buscar sua caixa diária de cerveja. Henry vendia a cerveja, pois sabia que o menino apenas cumpria as ordens do pai. 

― Ele tem estado de pileque ― respondeu o garoto, agora. ― Mas não é esse o problema. É... é... oh, Deus, é horrível! 

Henry percebeu que ia chorar, de modo que se apressou em dizer: 

― Carl, quer cuidar das coisas aqui por um minuto? 

― Claro. 

― Agora, Timmy, venha comigo ao depósito e conte-me o que há. 

Foi na frente do menino e Carl contornou o balcão, sentando-se no tamborete de Henry. 

Ninguém disse nada durante bastante tempo. Podíamos escutá-los lá nos fundos, a voz grave e lenta de Henry e as respostas agudas de Timmy Grenadine, falando muito depressa. Então, o garoto começou a chorar e Bill Pelham pigarreou, começando a encher o cachimbo. 

― Faz uns dois meses que não vejo Richie ― comentei. 

Bill resmungou: 

― Não perdeu nada com isso. 

― Ele esteve aqui... oh, perto do final de outubro ― disse Carl. ― Na época da Noite das Bruxas. Comprou uma caixa de cerveja Sclitz. Estava enorme de gordo. 

Não havia muito mais a dizer. O menino continuava a chorar, mas não parava de falar. 

Lá fora, o vento ainda uivava e o rádio anunciou que teríamos mais quinze centímetros de neve pela manhã. Estávamos em meados de janeiro e tentei adivinhar se alguém vira Richie desde outubro isto é, excetuando o menino. 

A conversa prosseguiu durante bastante tempo, mas, afinal, Henry e o garoto voltaram. 

O menino tirara o casaco, mas Henry vestira o seu. O garoto respirava fundo, como a gente costuma fazer quando o pior já passou, mas tinha os olhos vermelhos e logo que lançava um olhar a alguém, tornava a baixá-los para o chão. 

Henry parecia preocupado. 

― Acho que vou mandar o Timmy, aqui, lá para cima e mandar minha mulher preparar um queijo quente ou coisa assim. Talvez uns dois de vocês queiram ir comigo à casa de Richie. Timmy diz que ele quer mais cerveja e já me deu o dinheiro. 

Tentou sorrir, mas o resultado foi ruim e ele desistiu logo. 

― Claro ― disse Bertie. ― Que marca de cerveja? Eu vou buscar. 

― Pegue Harrow's Supreme ― respondeu Henry. ― Ainda temos algumas caixas a preço antigo. 

Levantei-me também. Teríamos que ser Bertie e eu. A artrite de Carl piorava muito em dias como aquele e Billy Pelham praticamente perdeu o uso do braço direito. 

Bertie pegou quatro embalagens de seis latas de Harrow's e eu as arrumei numa caixa, enquanto Henry subiu ao apartamento do sobrado para levar o garoto. 

Bem, ele acertou tudo com a patroa e tornou a descer, olhando por cima do ombro para certificar-se de que a porta do apartamento estava fechada. 

Billy perguntou, quase explodindo de curiosidade: 

― O que há? Richie anda espancando o garoto? 

― Não ― replicou Henry. ― Prefiro não dizer nada, por enquanto. Poderia parecer maluquice. Mesmo assim, vou-lhes mostrar uma. coisa: o dinheiro que Timmy trouxe para pagar a cerveja. 

Tirou quatro notas de um dólar do bolso, segurando-as por um dos cantos. Não o censurei. O dinheiro estava coberto por uma coisa cinzenta e pegajosa, que parecia a espuma que se forma nos vidros de conservas estragadas. Henry colocou as botas sobre o balcão e, com um sorriso esquisito, disse a Carl: 

― Não deixe ninguém tocar nelas. Não se metade do que o garoto disse for verdade! 

E foi até a pia do balcão de carnes lavar as mãos. 

Vesti o casaco e o cachecol, abotoando-me bem. Não adiantava pegar um carro; Richie morava num prédio de apartamentos na Curve Street, que é tão íngreme quanto a lei permite, de modo que é o último lugar onde os tratores de neve iriam trabalhar. 

Quando estávamos saindo, Bill Pelham disse: 

― Tomem cuidado. 

Henry limitou-se a assentir com a cabeça e colocamos a cerveja no carrinho de entregas que ele mantém junto à porta. E lá fomos nós. 

O vento nos atingiu como uma lâmina de serra e puxei o cachecol para proteger as orelhas. Paramos um instante à porta, enquanto Bertie calçava as luvas. Tinha uma careta de dor no rosto e bem sei como se sentia. Os mais jovens podem esquiar o dia inteiro e andar naqueles malditos carrinhos de neve, que zumbem como vespas, até tarde da noite; mas quando a gente chega aos setenta anos sem trocar o óleo, sente o vento nordeste no coração. 

― Não quero assustar vocês ― disse Henry, ainda com aquele esquisito sorriso de repulsa nos lábios. ― Mesmo assim, vou-lhes mostrar isto. E, enquanto andamos até lá, vou contar o que o garoto me disse... porque quero que vocês saibam, entendem? 

E tirou do bolso do casaco um revólver calibre 45 ― a arma que ele sempre mantinha carregada e pronta sob o balcão desde que começara a funcionar vinte e quatro horas por dia, nos idos de 1958. Não sei onde ele arranjou o revólver, mas sei que uma vez exibiu-o a um assaltante e o sujeito deu meia-volta depressa, tratando de fugir pela porta. Henry era um cara frio, no duro. Vi-o jogar na rua um universitário que entrou na loja e o aborreceu com a estória de descontar um cheque. O rapaz saiu andando como se estivesse com a bunda fora do lugar e quisesse ir ao banheiro. 

Bem, só lhes conto isso porque Henry queria que Bertie e eu soubéssemos que falava sério. E nós sabíamos. 

Portanto, começamos a avançar contra o vento dobrados como mulheres lavando o chão, Henry empurrando o carrinho e contando-nos o que o garoto lhe dissera. O vento tentava levar as palavras antes que pudéssemos escutá-las, mas conseguimos captara maior parte ― mais do que desejávamos. Fiquei muito satisfeito por saber que Henry levava o trabuco no bolso do casaco. 

O garoto disse que deve ter sido a cerveja ― todo mundo encontra uma lata estragada de vez em quando. Choca, ou fedorenta, ou esverdeada, ou pestilenta como as cuecas de um irlandês. Certa vez, um sujeito me disse que basta um furinho na lata para permitir a entrada das bactérias que causam essas coisas estranhas. O buraco pode ser tão pequeno que a cerveja nem chega a sair, mas as bactérias conseguem entrar. E cerveja é um ótimo alimento para os tais bichinhos. 

De qualquer maneira, o garoto contou que Richie levou para casa uma caixa de Golden Light, como sempre costumava fazer, naquela noite de outubro. Sentou-se para dar cabo da cerveja enquanto Timmy fazia os deveres de casa que trouxera da escola. 

Timmy já ia deitar-se quando escutou Richie dizer: 

― Jesus Cristo, isto está ruim! 

E Timmy perguntou: 

― O que, Papai? 

― Esta cerveja ― respondeu Richie. ― Deus, foi o pior gosto que já tive na boca! 

A maioria das pessoas ficaria admirada por Richie ter bebido a cerveja, já que tinha um gosto tão ruim, mas acontece que a maioria das pessoas nunca viu Richie Grenadine atacar uma lata de cerveja. Uma tarde, estive em Wally's Spa e vi Richie ganhar a aposta mais estranha. Apostou com um sujeito que seria capaz de beber vinte e dois copos pequenos de cerveja em um minuto. Nenhum dos locais topou a aposta, mas um vendedor de Montpellier colocou sobre o balcão uma nota de vinte dólares e Richie cobriu a aposta. Bebeu todos os copos com sete segundos de sobra ― embora mal conseguisse ficar em pé quando saiu. Portanto, calculo que a maior parte daquela lata de cerveja já estivesse no estômago de Richie antes que seu cérebro conseguisse dar o alarme. 

― Vou vomitar ― disse Richie ao menino. ― Cuidado! 

Mas quando chegou ao banheiro já tinha botado tudo para fora e ele deu o caso por encerrado. O menino disse que cheirou a lata e teve a impressão de que havia algum bicho morto lá dentro. Havia um pouco de espuma cinzenta na tampa. 

Dois dias depois, o garoto voltou da escola e encontrou Richie sentado diante da televisão, assistindo às novelas da tarde, com todas as cortinas do apartamento fechadas. 

― O que há? ― indagou Timmy, pois Richie nunca costumava chegarem casa antes das nove da noite. 

― Estou vendo a televisão ― replicou Richie. ― Não tive vontade de sair hoje. 

Timmy acendeu a lâmpada sobre a pia e Richie berrou: 

― Apague essa maldita luz! 

Timmy obedeceu, sem perguntar como iria fazer os deveres de casa no escuro. Quando Richie fica irritado, a gente não lhe faz perguntas. 

― E vá comprar uma caixa de cerveja ― acrescentou Richie. ― O dinheiro está em cima da mesa. 

Quando o garoto voltou com a cerveja, o pai ainda estava sentado no escuro; só que lá fora também já estava escuro. E a televisão desligada. O menino começou a sentir medo ― bem, quem não sentiria? Nada senão um apartamento escuro e o pai sentado a um canto, como um monte de carne inanimada. 

Portanto, Timmy colocou a cerveja em cima da mesa, sabendo que Richie não tomava cerveja muito gelada porque lhe provocava pontadas na testa, e quando se aproximou do pai começou a notar uma espécie de cheiro podre, como queijo velho que alguém deixou fora da geladeira durante o fim de semana. Todavia, não se preocupou muito, porque o pai nunca foi o que se pudesse chamar de primor de higiene. Em vez disso, foi para seu quarto, fechou a porta e começou a fazer os deveres de casa. Depois de algum tempo, escutou a televisão voltar a funcionar e o barulho de Richie abrindo a primeira lata de cerveja daquela noite. 

E foi assim que as coisas correram durante cerca de duas semanas. O menino acordava de manhã, ia para a escola e, quando voltava para casa, Richie estava diante da televisão e o dinheiro da cerveja em cima da mesa. 

O apartamento cheirava cada vez mais a azedo. Richie se recusava a abrir as cortinas e, por volta de meados de novembro, proibiu Timmy de estudar no quarto, alegando que não suportava a luz que saía por baixo da porta. Assim sendo, Timmy passou a estudar na casa de um colega, após levar a cerveja para o pai. 

Então, certo dia Timmy voltou da escola ― às quatro horas, quando já estava quase anoitecendo no inverno ― e Richie disse: 

― Acenda a luz. 

O garoto acendeu a luz sobre a pia e diabos se Richie não estava todo enrolado num cobertor. 

― Veja ― disse Richie. 

E estendeu uma das mãos para fora do cobertor. Só que não era uma mão. Uma coisa cinzenta, foi tudo que o menino conseguiu dizer a Henry. Não parecia uma mão. Apenas uma massa informe cinzenta. 

Bem, Timmy Grenadine ficou assustado de verde. Perguntou: 

― Papai, o que está acontecendo com você? 

E Richie respondeu: 

― Não sei. Mas não dói. É até... meio agradável. 

Então, Timmy disse: 

― Vou chamar o Dr. Westphail. 

E o cobertor começou a tremer todo, como se alguma coisa horrível tremesse ― toda ― por baixo dele. Richie replicou: 

― Não se atreva. Se fizer isso, encosto em você e vai acabar ficando igual a mim. 

E baixou o cobertor por um instante, deixando a cabeça à mostra. 

A essa altura, tínhamos chegado à esquina de Harlow e Curve Street; eu estava ainda mais frio que a temperatura marcada no termômetro de propaganda da Crush ria loja de Henry quando saíamos. Ninguém deseja acreditar em tais coisas, mas, mesmo assim, existe muita coisa esquisita neste mundo. 

Conheci um sujeito chamado George Kelso, que trabalhava para o Departamento de Obras Públicas de Bangor. Passou quinze anos consertando encanamentos de água, emendando fios elétricos e assim por diante; de repente, a menos de dois anos de completar o tempo de aposentadoria, pediu demissão. Frank Haldeman, que o conhecia, disse que George desceu para uma tubulação de esgoto na Essex Street, rindo e pilheriando como sempre, e tomou a subir quinze minutos depois com o cabelo branco como neve e os olhos esbugalhados como se tivesse espiado pela janela do inferno. Foi diretamente à garagem do Departamento de Obras Públicas, bateu o cartão de ponto, correu à Wally's Spa e começou a beber. Morreu dois anos depois, por causa da bebida. 

Frank contou que tentara conversar com ele a respeito e que George disse alguma coisa em certa ocasião, quando estava completamente embriagado. George virou-se no tamborete do bar e perguntou a Frank Haldeman se este já tinha visto uma aranha grande como um cão de bom tamanho, sentada no centro de uma teia cheia de gatinhos e outros pequenos animais presos nos fios de seda. Bem, que poderia Frank responder? 

Não estou querendo dizer que isto seja verdade, mas afirmo que existem coisas pelos cantos deste mundo capazes de enlouquecer qualquer pessoa que as veja. 

Portanto, ficamos parados na esquina durante um minuto, a despeito do vento que uivava na rua. 

― O que viu o garoto? ― indagou Bertie. 

― Ele disse que ainda conseguia ver o pai ― respondeu Henry. ― Mas Richie parecia coberto de geleia cinzenta... e estava todo amassado. Timmy disse que as roupas penetravam no corpo do pai, dando a impressão de se fundirem com a carne. 

― Santo Deus! ― exclamou Bertie. 

― Então, Richie tornou a cobrir-se e começou a berrar para que o menino apagasse a luz. 

― Como se fosse um fungo ― disse eu. 

― Sim ― concordou Henry. ― Mais ou menos isso. 

― Fique com o revólver à mão ― aconselhou Bertie. 

― Sim, acho melhor. 

E, com isso, começamos a subir a ladeira de Curve Street. 

O prédio onde ficava o apartamento de Richie Grenadine estava situado quase no topo da ladeira, um daqueles enormes monstros em estilo victoriano que foram construídos pelos magnatas da madeira na virada do século. Atualmente, quase todos eles estão transformados em casas de cômodos, divididas em pequenos apartamentos. Quando Bertie recuperou o fôlego, informou que Richie morava no terceiro andar, abaixo da empena superior que se projetava do telhado como um supercílio. Aproveitei a oportunidade para perguntar a Henry o que acontecera ao menino depois daquilo. 

Na terceira semana de novembro, o garoto voltou para casa e descobriu que Richie fora além de fechar as cortinas: pregara cobertores em todas as janelas do apartamento. O fedor piorava ainda mais ― uma espécie de cheiro de mofo, como o produzido por frutas postas a fermentar com lêvedo. 

Cerca de uma semana depois disso, Richie passou a mandar o filho esquentar a cerveja no fogão. Podem imaginar tal coisa? O garoto sozinho naquele apartamento, com o pai se transformando em bem, em alguma coisa... esquentando cerveja para ele e sendo obrigado a escutá-lo beber com um barulho horrível, como um velho desdentado tomando sopa podem imaginar? 

E assim correram as coisas até aquele dia, quando as aulas do menino terminaram mais cedo por causa da nevasca. 

― Timmy contou que foi direto para casa ― disse-nos Henry. ― Não há lâmpada no corredor ― o garoto alega que o pai deve ter saído às escondidas do apartamento, numa noite dessas, e quebrado a lâmpada ― de modo que ele foi obrigado a tatear até encontrar a porta. 

― Então, escutou alguma coisa se movimentando lá dentro e, de repente, veio-lhe à mente o fato de não saber o que Richie faz o dia inteiro, uma semana após outra. Há quase um mês ele não via o pai se mover da cadeira e um homem precisa dormir e ir ao banheiro de vez em quando. 

― Existe um olho-mágico bem no centro da porta, ou melhor, uma espécie de portinhola, que tinha um fecho por dentro. Mas o fecho está quebrado desde que eles moram lá. 

Portanto, o garoto se esgueirou até a porta e entreabriu a portinhola com o dedo, a fim de espiar para o interior. 

A essa altura, estávamos no pé da escada e a casa se erguia acima de nós como uma enorme carranca, as janelas do terceiro andar fazendo as vezes de olhos. Olhei para cima e, realmente, as duas janelas estavam negras como piche. Como se alguém as tivesse tapado com cobertores ou pintado as vidraças de preto. 

― Levou algum tempo até que os olhos de Timmy se acostumassem à escuridão. Então, ele viu uma grande massa disforme cinzenta, em nada semelhante a um homem, rastejando pelo chão e deixando atrás de si um rastro cinzento e pegajoso. Então, aquela coisa esticou um braço ― ou algo parecido com um braço ― e retirou uma das tábuas da parede. E tirou um gato de dentro do buraco. 

Henry fez uma pausa. Bertie batia as mãos uma na outra e fazia um frio dos diabos ali na rua, mas nenhum de nós ainda estava pronto para subir. 

― Um gato morto ― disse Henry. ― Putrefacto. Timmy disse que o animal parecia todo duro e inchado... e coberto de vermes brancos... 

― Pare ― disse Bertie. ― Pelo amor de Deus. 

― Então, Richie comeu o gato. 

Tentei engolir e senti uma coisa pegajosa na garganta. 

― Foi então que Timmy fechou a portinhola ― concluiu Henry em voz baixa. ― E fugiu. 

― Acho que não conseguirei subir ― declarou Bertie. 

Henry ficou calado, limitando-se a olhar de Bertie para mim e vice-versa. 

― Acho melhor subirmos ― disse eu. ― Trouxemos a cerveja de Richie. 

Bertie não protestou, de modo que galgamos a escada e passamos pela porta do vestíbulo. Senti imediatamente o cheiro. 

Conhecem o cheiro de uma fábrica de cidra no verão? É impossível eliminar o cheiro das maçãs, mas no outono não é tão ruim, porque o odor é bastante forte e penetrante para entupir o nariz da gente. Mas no verão, apenas fede. Era um cheiro assim, só que ainda pior. 

Havia uma lâmpada no corredor do térreo, fraca e amarela, coberta por um globo fosco e produzindo uma luz pálida como creme de leite. E os degraus subiam para as sombras. 

Henry parou o carrinho e enquanto ele retirava a caixa de cerveja eu apertei o interruptor junto à escada, que controlava a lâmpada do andar superior. Mas, como dissera o menino, a lâmpada estava quebrada. 

Bertie disse com voz trêmula: 

― Eu levo a cerveja. Pegue o revólver. 

Henry não discutiu. Entregou a caixa a Bernie e começamos a subir. Henry na frente, depois eu, finalmente Bertie carregando a caixa. Quando chegamos ao patamar de cima, o cheiro estava muito pior. Fedor de maçãs podres, fermentadas, e um odor ainda mais fétido. 

Quando eu morava em Levant, tive um cachorro ― chamava-se Rex ―, um bom cão, mas não muito esperto em relação a automóveis. Uma tarde, quando eu estava no trabalho, ele foi atropelado e se arrastou para baixo da casa, onde morreu. Meu Deus, que fedor! 

Afinal, fui obrigado a rastejar até lá e retirá-lo com uma vara. Aquele outro cheiro era igual: pútrido, cheio de moscas, imundo. 

Até então, eu pensava que talvez fosse algum tipo de pilhéria, mas agora percebi que não era. 

― Cristo! Por que os vizinhos não chamam Harry? ― perguntei. 

― Que vizinhos? ― retrucou Henry, exibindo outra vez aquele sorriso esquisito. 

Olhei em volta e percebi que o corredor estava empoeirado, com ar de abandonado, e que as portas dos três apartamentos naquele andar se achavam fechadas e trancadas com cadeados. 

― Quem é o dono da casa? ― perguntou Bertie, descansando a caixa na extremidade do corrimão e recobrando o fôlego. ― Gaiteau? Espanta-me que não tenha expulsado Richie daqui. 

― Quem subiria até lá para expulsá-lo? ― quis saber Henry. ― Você? 

Bertie ficou calado. 

Afinal, começamos a subir o lance seguinte, cujos degraus eram ainda mais estreitos e íngremes que o anterior. Estava ficando mais quente, também. Parecia que todos os radiadores do local silvavam e estalavam. O cheiro era terrível. Comecei a sentir-me como se alguém me remexesse as tripas com uma vara. 

Lá em cima, um pequeno corredor e uma porta com uma portinhola à guisa de olho mágico. 

Bertie emitiu um grito abafado e sussurrou: 

― Vejam no que estamos pisando! 

Olhei para o chão e vi toda aquela gosma, formando pequenas poças. Parecia ter existido um tapete, mas aquela matéria cinzenta o devorara. 

Henry andou até a porta e fomos atrás dele. Não sei quanto a Bertie, mas eu tremia da cabeça aos pés. Henry, porém, não hesitou: ergueu o revólver e bateu com a coronha na porta. 

― Richie? ― chamou ele; embora pálido, sua voz não dava sinais de medo. ― Aqui é Henry Parmalee, do Coruja Noturna. Trouxe sua cerveja. 

Durante um minuto, talvez, não houve resposta. Então, uma voz perguntou: 

― Onde está Timmy? Onde está meu filho? 

Quase fugi, então. Aquela voz não era humana. Era esquisita, baixa e borbulhante, como alguém falando através de um bocado de sebo. 

― Está na minha loja, fazendo uma refeição decente ― respondeu Henry. ― O garoto está magro como um gato de rua, Richie. 

Nada durante algum tempo. Então, um horrível barulho molhado, como um homem de botas de borracha andando num atoleiro. Depois, aquela voz podre falou do outro lado da porta. 

― Abra a porta e empurre a cerveja para dentro ― disse ela. ― Só que você vai ter que puxar o anel do trinco, primeiro. Eu não posso. 

― Num instante ― replicou Henry. ― Como está você, Richie? 

― Não interessa ― respondeu a voz, horrivelmente ansiosa. ― Empurre a cerveja e vá embora! 

― Já não são só gatos mortos, hem? ― disse Henry, parecendo triste. 

Já não segurava o revólver pelo cano, mas empunhava-o pela coronha, pronto para atirar. 

Então, num relance, fiz a associação mental que Henry já fizera, talvez até mesmo enquanto Timmy relatava o caso. O cheiro de putrefação dobrou em minhas narinas quando estabeleci a ligação. Durante as últimas três semanas, duas garotas e um velho pau-d'água do Exército da Salvação haviam desaparecido ― todos depois do anoitecer. 

― Empurre a cerveja para dentro ou sairei para buscá-la ― disse a voz. 

Henry fez sinal para que recuássemos e obedecemos. 

― Acho melhor você vir buscar, Richie. 

E engatilhou o revólver. 

Nada. Nada durante longo tempo. Para dizer a verdade, tive a impressão de que tudo terminara. Então, a porta se abriu com violência, tão de repente e com tanta força que chegou a estofar-se antes de ser atirada contra a parede. E Richie saiu. 


Numa fração de segundo, apenas uma fração de segundo, Bertie e eu descemos as escadas como meninos de escola, quatro ou cinco degraus de cada vez, e saímos pela porta principal para a neve da rua, escorregando e derrapando. 

Enquanto descíamos, escutamos Henry atirar três vezes, os estampidos reboando como granadas nos corredores fechados daquela casa deserta e mal-assombrada. 

O que vimos naquela fração de segundo ficará comigo a vida inteira ― ou o que resta dela. Foi como uma imensa onda de geleia cinzenta, geleia que parecia um homem, deixando atrás de si um rastro pegajoso. 

Mas isso não foi o pior. Os olhos eram chatos, amarelos e selvagens, desprovidos de alma humana. Só que não eram apenas dois ― eram quatro. E na entrada daquela coisa, entre os dois pares de olhos, havia uma linha branca e fibrosa, através da qual aparecia uma espécie de carne pulsante e rosada, como um corte na barriga de um porco. 

A coisa se dividia, entendem? Dividia-se em duas. 

No caminho de volta à loja, Bertie e eu não trocamos uma só palavra. Não sei o que lhe ia na mente, mas sei muito bem o que ia na minha: a tabuada de multiplicação. Dois vezes dois são quatro, quatro vezes dois são oito, oito vezes dois são dezesseis, dezesseis vezes dois são... 

Chegamos. Carl e Bill Pelham levantaram-se de um pulo e começaram de imediato a fazer perguntas. Bertie e eu não respondemos, nenhum dos dois. Simplesmente nos viramos para porta, a fim de vermos se Henry ia entrar da rua coberta de neve. Eu já estava em 32.768 vezes dois é o fim da raça humana, de modo que tratamos de tomar cerveja e esperar para ver qual dos dois voltaria finalmente. E ainda estamos sentados aqui.    

Esperando que seja Henry.

EU SÓ ACHO... QUE O HENRY NÃO VAI VOLTAR...

QUE SEUS PESADELOS SE TORNEM REAIS

BOA NOITE

7 comentários:

  1. Legal ontem chegei na metade e.... Durmi .-.

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    1. E a creepy e muito boa gostei bastante. E o infeliz voro cerveja podre? O.O

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  2. O Ministério da Saúde adverte: beber cerveja estragada pode te transformar em um alienígena demônio cinza e gosmento.

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  3. Esse é um conto do King não uma creppy e também não tem continuação, a não ser na mente do leitor.

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  4. Gente, pelamor de Baphollynho, lê a caralha da introdução para entender do que se trata (embora eu ache que o título já é mais que suficiente)

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